Estivemos, na última sexta-feira, perdidos algures no Cine-Teatro Gilberto Mendes, ali na baixa da cidade de Maputo, onde aos feriados (e as suas vésperas), às sextas (dia por nós escolhido), sábados e domingo um grupo de actores sobe ao palco, para, do jeito cómico e dramático, falar-nos dos nossos modus vivendi e da opção da maioria no palco do dia-a-dia.
A peça que está no ar agora (já nas últimas semanas) é “A família do candidato”, muito a propósito dos últimos descontentamentos políticos e sociais: eleições presidenciais, para sermos precisos. Aliás, a Companhia de Teatro Gungu sempre acostumou-nos a ir à sociedade, às nossas casas, às nossas ruas, às prateleiras dos nossos corações para buscar pretextos de criação, inspiração e criatividade.
Em “A família do candidato”, desengane-se quem julgar o contrário, Gungu não fala apenas sobre eleições, mas de tudo o resto à sua volta: a forma e o conteúdo dos manifestos eleitorais; os apetites da ‘família real’ e os segredos da ‘exploração’ do povo; os modelos e interesses obscuros da governação; o roubo de votos e as contestações populares e todo o marasmo que se vive na crise pós-voto.
Esta fotografia pré e pós-eleitoral é capturada a partir de um ângulo específico: na casa de um candidato presidencial. Todavia, revela-nos problemas de toda uma sociedade sequestrada pela gula do Estado, decidida nos quartos; uma sociedade (des)alimentada por vontades egocêntricos daqueles que governam ou, no caso, daqueles que ambicionam governar, o que é ainda bem-pior.
“A família do candidato” é a verdadeira metáfora do caos que se vive no país nos últimos meses, e consegue expressivamente bem nos fazer rir da nossa própria desgraça, enquanto reflectimos sobre o significado actual da política e as suas decisões na conjuntura social. É uma peça que fabrica risos com uma naturalidade invejável, mas também atiça a crítica aos dilemas eleitorais e eleitoralistas.
Nesta peça, temos um cruzamento de experiências políticas – de quem governa (manda) ainda sendo candidato e de quem luta para governar, mas a fraude lhe amputa tais intenções. Embora, na vida real, os dois caminhos cruzam-se numa única figura: Venâncio Mondlane.
Aprendemos, em “A família do candidato” como se forjam as boas e más intenções governativas e de que forma essas (intenções) impactam na rotina do pacato-vivente. Esta narrativa traz-nos uma ideia de que a governação não passa de um negócio, pensada pelo irmão do candidato, com o fim último de lesar o Estado, de criar um poço financeiro na despesa pública. De longe parece mirabolante, fantástica, com todos os condimentos para ser concretizada, mas as intenções do proponente são avessas ao bem-estar do país.
O projecto, apelidado “Renascer Moçambique” imita as grandes cidades do Primeiro Mundo, que passa pela transformação do famoso Mercado Estrela, em Maputo, num ‘Shoping Center’ com direito a túnel de três saídas: uma para a zona da Brigada Montada; outra para Marracuene e outra ainda para KaTembe. Esta é a grande ideia do manifesto paralelo do candidato Bernardino Zandamela (um nome sugestivo a Elísio Cuinica, que cruza o rosto do comando da barbárie policial e do chanceler da moeda moçambicana). Todos fingem que não apostam, que não querem, mas se o Zandamela – o personagem – tivesse ganho as eleições – mais dia, menos dia – todos os interlocutores já estariam convencidos sobre a viabilidade do plano.
Este projecto, diga-se, lembra-nos o descalabro da protecção costeira e pesca de atum que resultou em Dívidas Ocultas. E parece que o irmão do candidato (Dino Mboa) imita a verborreia do Ndambi, filho do Presidente da República, na altura dos factos. Portanto, se no universo real temos o filho a ‘paquerar’ o pai para aprovar ‘o grande projecto’, na sala do Gilberto Mendes temos o irmão. Os dois, já agora, carregam as mesmas intenções, de encher o bolso à custa de políticas públicas falhadas, propositadamente.
Não houve quem não tenha ouvido os milagres do “Renascer Moçambique” como quem não tenha ouvido sobre “Protecção costeira” na vida real. O candidato (Elísio Cuinica), o assessor do candidato (Anderson Machava) e a primeira-dama (Dulce Malate), aliás, a futura primeira-dama são os que mais beberam sobre as possibilidades da zona metropolitana de Maputo ser um parque imobiliário de invejar o paraíso. Mas, ao mesmo tempo, a filha do candidato (Inoligia Gulube) – uma activista social contra a maré – impunha justiça, igualdade de direitos, honestidade governativa e o respeito pelo povo.
A filha do candidato, tal como se fala durante a encenação, é a Quitéria Guirengane da realidade, e nós acrescentaríamos, Fátima Mimbire ou a saudosa Alice Mabota. Estes são os rostos que a filha do candidato nos convida a chamar quando senta com o pai (o candidato) para lhe confrontar sobre o seu manifesto eleitoral. E, espantosamente, percebe que se trata de uma governação baseada no umbigo próprio do que realmente em atender as lágrimas do povo.
Debalde! A menina, que também convive num relacionamento abusivo e interesseiro, deixa de ser a luz da família e se transforma em trevas, quando se atrai ao álcool e ‘a vida bandida’, bem como a amiga da sua mãe, a futura assessora.
Falando em assessores, o pai (o candidato presidencial) chamou o seu amigo de infância como seu responsável político e a futura primeira-dama fez o mesmo. O assessor do candidato preocupava-se apenas com o dinheiro da campanha e a assessora da esposa do candidato (Chana Simões) queria parte desse valor para bancar os seus ‘txilingues’. Estas duas escolhas, pelo menos a peça nos leva assim a pensar, reflectem os requisitos usados pelos nossos governantes para empossamento de dirigentes públicos: nepotismo, amiguismo e coleguismo.
O resultado disso é que, no final do dia, ninguém foi votar no candidato presidencial, por isso, só teve 1% de votos, embora, em algum momento, a peça reforce a ideia de fraude através do apagão de electricidade que sempre acontece nestes momentos.
“A família do candidato”, por estes e mais motivos, consegue ser mais verosímil, olhando para o percurso eleitoral do ano passado e faz uma radiografia fiel dos acontecimentos mais pomposos, imitando termos característicos nestes dias de revolta popular; passando em revista cada acto de “vandalismo” e, sustentando-se a factos reais, consegue aproximar o espectador aos seus problemas, bem como, talvez, sugerir alguma solução.
É uma peça à marca Gungu, com os actores do segundo escalão (caso ainda persista a categorização), mas que emprestam talento e alma aos personagens. O Candidato, ainda que tenha o papel principal, os nossos créditos vão para o Assessor, um personagem de força e fôlego que, ao estilo de Nhangumele (das Dívidas Ocultas) atravessa na família como uma tesoura poderosa, capaz até de interferir em aspectos libidinosos do assessorado.
Não só ele. O Irmão do Candidato é outro personagem vibrante, com um manifesto de facto, por isso, quando roubado, enlouquece. A mãe do candidato (Yolanda Helena), uma personagem secundarizada, faz da peça um elemento familiar, preservando alguma moral, mesmo com os ataques insultuosos. O melhor mesmo, foi o facto dela ter conseguido convencer o Pai do Candidato (Frederico Matlhombe) a não voltar ao cativeiro, mesmo depois de ver a esperança de ser o pai do Presidente da República escorregar.
Para terminar, temos a dizer que “A família do candidato”, a 103ª. peça da Companhia de Teatro Gungu, é uma narrativa obrigatória por estes dias, e era bom que os amantes da tragicomédia não perdessem esta oportunidade. Mas atenção, o convite que a Entre Aspas endereça não se resume aos risos e pipocas, pois esta peça, que combina muito bem a música e a luz, reserva-nos uma lição: a ideia de que só és importante quando tens poder, por isso, no fim, o candidato foi abandonado até pela sua própria família.

Elcídio Bila
Elcídio Bila é jornalista há 10 anos, escrevendo sobre artes e outros assuntos transversais. Tem passagens por dois órgãos de comunicação e diversos projectos de Media. Trabalha também como copywriter e Oficial de Relações Públicas em agências de comunicação. É fundador e director editorial do projecto Entre Aspas.