O pouso do casco é o quarto livro do autor, antecedem-lhe A extinção das cinzas (2021), Almas em tácitas (2015) e Vontades de partir & outros desejos (2014).

O poeta segue a linha dos cultores do verso cujo labor da imagem e do símbolo são produtos de uma oficina que quando não esconde por detrás do signo as suas intenções, o peso da leitura do real adormece num aparente sonambulismo e desvela a abstracção da condição humana e política do seu domicílio e o lugar das questões mínimas que vitalizam os Homens. Aí, as angústias, as poucas alegrias que ainda se é capaz de experimentar, as incomensuráveis hipóteses do amor, o compromisso com a arte num contexto cuja brutalidade colide com o ofício de se ser poeta, são um motivo à imaginação que é, ao fim, a própria força de metaforizar e articular o real.

Lino Mukurruza tem uma tendência lírico-dialógica em seus textos, orienta-se com o martelo estético na mão a fim de quebrar, a modo dos mineiros, os rochedos de hermetismo cujo poeta que sobre seu chão reside constrói. Como nos outros livros, neste O pouso do casco o poeta põe-se a olhar de tudo e todos, e os signos, às vezes embriagados do distanciamento dissimulado, tropeçam nas linhas do espaço-tempo que encerra a tonalidade afectiva do eu-poeta e então escutam-se seus diálogos com outras artes, com outras gentes, com outras coisas, até ao ponto de chegar a animar versos num puro acto de personificação do imaginário.

Em O pouso do casco, o ser senciente, essa alma culta que se chama poeta investe seus esforços para tracejar, mediante seu próprio destino de reflexão, os grandes contornos do Corpo e sua extensão, e quando se doa a um modo próprio de sentir, pela imaginação, os segredos mais ocultos da espécie humana, ela se conscientiza de que, na base de todas pulsações íntimas, fica sempre o desejo como o motor dos Homens. É o desejo do poema como corpo a ser vestido de palavra. E ao escrever sobre o desejo, principalmente sob a tónica em que o corpo ocupa o lugar da vida, Lino Mukurruza encontra nos pequenos gestos e nas pequenas coisas, o motivo de um verso ou poema, numa época em que se dessacralizou o corpo.

Os poemas deste livro pretendem devolver-nos a bem sabida e clássica sacralidade do corpo, lugar da vida, mostrando que o imaginário é em certa medida produto daquela. Afinal, é esse casco, o corpo, que determina o acesso à interioridade do externo, e não é apenas o fora que prevalece quando, em contacto corpo a corpo com o mundo, se produzem afeiçoes de pulsação da vida. Durante toda uma história da humanidade se mundanizou o corpo e fragmentou-se em coisa possessa a combater, mas este livro é a lírica de um retorno, um tratado sobre o pouso do corpo no seu lugar cimeiro na construção de nossa sensibilidade vitalizadora.

A condição poética de O pouso do casco é viabilizada pelo cuidado de fazer da letra casa do corpo, parecendo que o poeta desloca-se no interior das palavras – este puro pensamento –, tidas como o primeiro impulso à construção de qualquer mito e sua significação. E pousando o casco sob o chão da palavra, segreda-nos o poeta que há “uma asa que interioriza casa dentro da língua”, este é o pensamento, emplumado e voador, que se quer abrigar no corpo por meio da língua. O pensamento é essa fonte de intelectualização dos sentidos que Lino Mukurruza procura, como um bom Criador, em todos os domínios do espírito e do coração de quem vive do artesanato, e é portanto sua weltsform modelar os objectos em seu entorno, dar-lhes uma dicção própria forjada num ethos que tem as ferramentas para se anunciar, ao modo das sagradas escrituras que não se lêem na linearidade, sob o risco de se lhes esvaziar os múltiplos códigos que retêm em seus ângulos.

Ao longo de todo este livro, sente-se a intuição do poeta ao apalpar o corpo e a apelar aos elementos de sua extensão sensorial para, num simbolismo declarado, dizer-nos de seu compromisso com a palavra. Por isso que as vozes, as mãos, o tacto, a língua, o silêncio, o abraço, o olhar, a visão, o sangue, os cheiros, a memória, o olfacto, o amor, a audição e as angústias a ele amplificadas, como extensão de um corpo vivo, ou como “um ângulo conjugado sobre a matéria do corpo”, persistem como ferramentas para construir o poema. O corpo, aqui casco, é o tropo constante, coloca-se como lugar do material e imaterial a ser pousado. O título é já por si uma metáfora, a metáfora do sensório que é pensado a partir do momento em que atravessa temas como a solidão, o amor, a saudade, para dizê-los o antro onde habita o humano.

A parataxe é uma figura de sintaxe que expressa uma relação entre versos e palavras sem o uso de conectivos de subordinação ou coordenação para o todo que é a ideia, e neste O pouso do casco anuncia-se na forma independente de como os versos se relacionam uns dos outros no poema: “respiro mão direita/ cor-de-rosa em mim/ sombra em asa de gaivota”. Estes versos encontram-se no mesmo contexto sintáctico, porém a ausência de elementos de subordinação e coordenação entre eles fá-los estarem aparentemente desvinculados uns dos outros, como fossem ideias soltas. Mas esta não é a única das figuras aqui abundantes, há uma proliferação de sinestesia ao longo dos poemas, onde o corpo e sua extensão, vistos como porta de entrada do poético, expressam sensações diferentes em uma mesma imagem, culminando com a associação sensorial incomum de ideias. Eis então versos como: “chão plano árida melodia de voz” que, ao associar a qualidade árida do chão com uma melodia de voz, mistura nos versos sensações tácteis (chão árido) com uma experiência auditiva (melodia de voz); ou ainda quando o poeta diz “amarga maresia”, onde a conjugação de palavras aponta para uma mistura de sensações palatais (amarga) e olfactivas (maresia), criando uma imagem sensorial vívida, cuja poética encontra sua condição de ser nela.

A simbólica representação lírica do mundo em seu entorno, vista como uma incongruente visão entre o mundo-vivido, o onírico e a realidade, como fossem mundos que tratassem cada um deles, a seu modo e forma, o corpo sem paralelismos, é de tal modo presente que somente dando as sensações do corpo e sua extensão às metaforizações e à abstracção pode-se ver que, no fim das contas, tudo não passa do imaginado sob “a inocência de um ser humano”, como justifica o poeta.

Penso que o leitor vai, no fim deste livro, olhar os lugares e as coisas com as quais o corpo e sua extensão possibilitam que, por intermédio do símbolo, cheguem aos sentidos como condição poética. Por vezes vai doer, caro leitor, por vezes vai-se adoçar o sabor das amarguras que nos habitam a alma, mas vai ser, acima disso, uma leitura do sensível, da voz que quer construir o mundo, cujo corpo é nossa porta de entrada, até quando não o dizemos e a palavra é só silêncio, como aqui se revela nalguns versos: “silêncio que devora sombra antiga” ou “física patologia do silêncio abstracto”.

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Daúde Amade

Daúde Amade nasceu na cidade de Maputo, em 1993. É professor, escritor e ensaísta. É licenciado em Ensino de Filosofia com Habilitações em História pela Universidade Pedagógica; também cursou – e não concluiu – Licenciatura em Literatura Moçambicana pela Universidade Eduardo Mondlane. Tem textos publicados em revistas de arte e filosofia e em colectâneas nacionais e estrangeiras como: Um natal experimental e outros contos, vol. 1 e 2 (Gala-gala edições, 2021 e 2022), Ubuntu: Literatura e ancestralidade (Gala-gala edições, 2022), Mazamera sefreu (Editora Kulera, 2023), Crónicas de Yasuke (Editora Kulera, 2024). Participou de oficinas de escrita criativa da Fundação Fernando Leite Couto. É vencedor do prémio de poesia da Gala-Gala Edições na sua 1ª. edição, em 2020.

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