Crónica de viagem I: De Maputo a Milão, e um respirar sossegado em Doha

Partimos… sim, eu e as minhas ansiedades. Partimos às catorze e… ou melhor, antes das quinze e o destino era Doha, Qatar. Notava-se pelas aeromoças que, sem dúvida, íamos ao Médio Oriente – meninas deslumbrantes que te fazem viajar no calor de toda a ternura. E o avião? Uma coisa enorme, com assentos em nove colunas; uma TV em cada assento. Era possível ver filmes, séries e escutar música de todo o mundo e de todas as escolhas ou até optar por alguns jogos.

O assento tinha um conjunto de coisas para a melhor experiência. A primeira delas é um pequeno cobertor, macio e aquecedor. Foi aí que deixei de me arrepender por não ter levado a mantinha cor-de-rosa da Líria. Tinha ainda uma pequena almofada, para adicionar conforto ao assento. Era um assento vermelho, com um revestimento cinza por trás. Um ajustamento da cabeça, que pode ir mais para cima ou mais para baixo, consoante a vontade e necessidade.

Para ver filmes (ou outra coisa na pequena tela) tinha uns auscultadores, mas também, graças a Deus, era possível colocar o cabo de celular na bunda da minha bombinha sempre descarregada.

Estávamos a bordo de um Boieng 787, onde tivemos uma “experiência de voo incomparável em termos de conforto, luxo e eficiência, graças à combinação perfeita de uma obra-prima da engenharia aeronáutica com a extraordinária hospitalidade a bordo da Qatar Airways.”

Não tardou que uma aeromoça sul-africana chamada Samukeliswe me visitasse os sentidos com uma carinha repleta de bebidas. Primeiro pedi um vinho, tinto, disse, quando ela quis saber da opção mais acertada. Mas depois, porque Cliff Fahardine, meu colega nesta expedição, optou por um whisky, decidi ir por aí. E jáz, estava a degustar de uma coisa chamada Dewar’s, uma marca produzida pela Bacardi, na Escócia. Portanto, aquele whisky escocês acompanhou-nos até Doha, na melhor das perfeições, não só em termos de sabor.

Na tela, depois de uma boa temporada procurando algo que prestasse, deparei-me com “Diário de uma paixão”, um filme que fala de um jovem casal de diferentes classes sociais que é abruptamente separado pelas circunstâncias e pela eclosão repentina da Segunda Guerra Mundial. Um bom filme. Quase ensaiei um par-de-lágrimas, mas desisti pelo caminho. Era só um filme. Não, calma aí, um alto filme. Por sinal, Italiano, de 2005, realizado por Nick Cassavetes e como protagonistas tem Ryan Gosling (Noah Jr.) e Rachel McAdams (Allie Hamilton).

Tivemos a primeira refeição às dezasseis horas. Um prato farto: uma pasta com bife com queijo; uma sobremesa, mousse; e uma salada estranha, de grãos, que não passei da primeira garfada. E, claro, o meu bom Dewar’s na companhia.

Faltavam quatro horas quando pedi um café e uma água. Não sei se era para atenuar as doses de whisky ou para aliviar as febres que percorrem nas minhas veias sempre que a sul-africana passa por mim.

Andávamos a 38 mil pés quando uma mistura de jazz me embalou os sentidos. Eram dezoito e alguma coisa e o avião estava todo escurecido, o exterior também. Algumas luzes que fugiam das telas davam vida a viagem. Cliff dormia. As vezes despertava. Tocava na sua tela não sei para quê. A procura de algo melhor, talvez. Eu espreitava o meu whisky de vez em quando. Era a grande companhia ao jazz. Não podiam se dissociar. Para além do saxofone, e uma leve sonoridade da bateria, o teclado reinava nos meus ouvidos. Uma mistura perfeita. E para a minha alegria, sentia o calor da sul-africana no corredor. Não vinha com bebida e nem ia com nada. Acho que vinha me ver. Espiar talvez. Como eu fazia. Mesmo quando não a visse.

A tela cansou de me vender publicidade. Escureceu. Ainda bem. Ainda bem que a música não tomou os mesmos desejos. Continuava ecoando. Era Miles Davis. Depois John Coltrane e outros clássicos.

Nos instantes finais da viagem, viajei ao som de Nina Simone, numa live realizada no Casino Montreux Years. ‘Don’t Smoke in Bed’ foi a música de aterragem, que me ajudava a controlar o ruído dos ouvidos. É sempre assim quando o avião aterra. Os tímpanos fecham-se e uma dor insuportável nos aperta as entranhas. Estávamos a onze mil pés. Continuávamos a descer. Faltavam-nos quinze minutos. Muito tempo para a minha dor. Fui aguentando. Aliás, a sul-africana, que corria de um lado para o outro, afinando os assentos, ajudou-me a controlar a tensão. Nesse instante, Nina Simone cantava ‘What a little moonlight can do’, a faixa número quatro do álbum.

Restava-nos cinco minutos. Estamos a quatro mil pés. Vinte duas e vinte e dois. A dor continuava, mais severa. Os ouvidos reclamavam aterragem. Pior que a sul-africana já não passa por mim. O seu consolo evaporou-se. Estamos em Doha, Qatar, oito horas depois. Aterramos, precisamente vinte duas e trinta.

Os meus ouvidos foram se abrindo no autocarro. Enquanto andávamos no interior do aeroporto, usando os truques que Alessandro Caspoli, nosso formador e guia de viagem. Era como se saísse de Laulane à Baixa, o mesmo movimento. Mas ainda estávamos no Aeroporto, milagrosamente.

[…]

Saímos de Doha às duas, depois de inundar a vida com uma das ‘sete maravilhas’ do mundo, o Aeroporto Internacional de Hamad. Desta vez calhei com o assento preto e sempre no corredor, me possibilitando todas as fugas que eu quiser. Mas, infelizmente, aqui não estou com Cliff. Estou com um par de namorados que de vez em quando vivem se apalpando. E logo me recordo da despedida emocionante da Líria, que me apertava forte na hora do adeus.

De Doha até Milão explorei todos os sentidos do sono. Ainda que o assento fosse confortável eram muitas horas para me aguentar na mesma posição, mas levei a manta aos olhos e ignorei tudo e todos, mesmo quando o assistente de bordo me cutucava para me dar mais bebida. Aquela hora, meu estômago já não conseguia digerir mais nada, pouco que fosse. Às seis, quando despertei, finalmente, experimentei uma chávena de chá. Soube bem. E umas frutas. Também foi tranquilo. Pedi, então, algo que me ajudasse na digestão. O moço, todo simpático, tirou da sua colecção de bebidas um frasco preto, minúsculo, que combina muito bem com veneno e entornou no meu copo. Tinha tudo de Amarula, perguntei. E ele consentiu. Preferi registar em fotografia, antes mesmo dele se escapulir. Aliás, a ideia foi mesmo dele. Vai daí que me interesse por aquele creme de licor um dia, deve ter pensado. Precisamente às sete e cinquenta e quatro às rodas do avião tocavam o Aeroporto do Milão-Malpensa, sem o mesmo estrondo da LAM, o nosso primeiro destino na Itália, pela primeira vez na Europa e pela primeira vez fora de Moçambique, pelo menos para mim.

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Elcídio Bila

Elcídio Bila é jornalista há 10 anos, escrevendo sobre artes e outros assuntos transversais. Tem passagens por dois órgãos de comunicação e diversos projectos de Media. Trabalha também como copywriter e Oficial de Relações Públicas em agências de comunicação. É fundador e director editorial da Entre Aspas.

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