Heróis moçambicanos: O condão artístico-patriótico de Justino Chemane simbolizado no ‘pátria amada’

Justino Chemane nasceu em Gaza, há um século, precisamente no dia 15 de Outubro de 1923 e perdido a vida a 19 de Janeiro de 2004, vítma de paragem cardíaca.

Foi, afinal, o autor dos dois hinos nacionais que vigoraram em Moçambique, com a independência nacional: primeiro o “Viva Viva a Frelimo”, de 1975, que vigorou durante 27 anos, até ser substituído pelo “Pátria Amada”, de 2002, onde também teve papel fundamental na composição. Sua contribuição “artistico-patriótica” atravessou fronteiras nacionais ao compor o hino da Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral (SADC).

É machope, grupo étnico da meridional província de Gaza, onde nasceu, concretamente em Chidenguele, a 15 de Outubro de 1923. Seus progenitores baptizaram-no como Sigaulane Chemane, embora depois registado como Justino Chemane, no contexto da política de assimilação imposta pelo Estado colonial português da época. Seus estudos primários deram-se na Escola da Missão Suíça de Maússe, em Manjacaze (portanto, ligada a Igreja Presbiteriana, na actual província de Gaza). Foi também por estas épocas que o interesse pela música iniciou. Chemane via solidificar-se a sua paixão pela arte musical nesta missão. Para desenvolver os seus conhecimentos na área musical, Justino Chemane passava o tempo a aprender sozinho, até que atingiu a maturidade que o catapultou para o estrelato do canto coral moçambicano, onde foi bastante respeitado enquanto maestro.

A arte musical ao serviço do patriotismo moçambicano

Por volta de 1939, Chemane dedicava-se ao estudo da música popular moçambicana, depois de ter estudado sozinho alguns compositores clássicos, como Bethoven, Mozart e Stravinsky, que lhe serviram de inspiração, a par de outros compositores locais como Fany Mpfumo, Eusébio Johane Tamele (Zeburani) ou Alexandre Jafete. O maestro também influenciou outras gerações da música moçambicana, são os casos de Amélia Moyana, Arão Litsuri, Hortêncio Langa, Cândida Mata, Gonzana, bem como a Companhia Nacional de Canto e Dança. Mas há igualmente uma forte influência do maestro nos cânticos da Igreja Presbiteriana, uma destacada igreja com fortes ligações com alguns dos nacionalistas que lideraram a FRELIMO aquando da sua formação. Justino Chemane como maestro trouxe para o canto coral moçambicano um estilo próprio e único, que vai do clássico ao tradicional, passando pelo moderno.

Seu repertório musical é composto por mais de 200 canções, gravadas e difundidas pela Rádio Moçambique (RM), estação radiofónica estatal para a qual trabalhava; a maior parte das quais registadas em fita magnética e versando sobre temáticas relevantes nos domínios da educação cívica, político-ideológica e histórico-cultural. Dados evidenciam a particularidade de, na altura da independência nacional, ser considerado o único maestro-compositor de canções populares. Boa parte delas predominaram também os cânticos religiosos, sobretudo da Igreja Presbiteriana de Moçambique (IPM), também conhecida por Missão Suíça, uma igreja cujo papel patriótico e nacionalista forjou muitos outros heróis moçambicanos, com destaque para o próprio Eduardo Mondlane, fundador da FRELIMO e Armando Guebuza, terceiro Presidente de Moçambique, tanto quanto outras figuras conhecidas na contemporânea história de Luta de Libertação de Moçambique, a exemplo de Uria Simango (co-fundador da FRELIMO e seu vice-presidente por longos anos antes da independência de Moçambique).

Algumas informações apontam que, na altura da sua morte, o maestro encontrava-se a recuperar de uma fractura no pé esquerdo, depois de ter ficado hospitalizado durante cerca de dois meses, resultado de um atropelamento por uma viatura de transporte semi-colectivo de passageiros na cidade de Maputo.

Do “Viva, viva a FRELIMO” ao “Pátria Amada”: as metamorfoses sócio-políticas de Moçambique reflectidas nos hinos nacionais

Ao conceber os hinos nacionais, Justino Chemane via-se também desafiado a fazer a interpretação sócio-política, sem se descurar das memórias históricas pela qual atravessa(va) a nação moçambicana. Basta perceber que o primeiro Hino Nacional foi criado num contexto de partido-único – a Frelimo(1) – que à altura se considerava única força política com legitimidade para orientar os destinos sócio-políticos, económicos e culturais nacionais, à moda de um Estado totalitário. A FRELIMO, cujo papel histórico levou-a a uma luta pela independência triunfada em 1975, precisava ver estampado seu reconhecimento ao mais alto nível, e o fez, com o punho de Chemane, ao entoar a sua ideologia e visão política deste mesmo Partido-Estado no primeiro hino nacional – o “Viva, Viva a FRELIMO!”:

“Viva, viva a FRELIMO
Guia do Povo Moçambicano!
Povo heróico qu'arma em punho
O colonialismo derubou
Todo o Povo unido
Desde o Rovuma até o Maputo
Luta contra imperialismo/Continua e sempre vencerá.”

Ficava evidente nesta primeira estrofe do hino a ovação e o culto à FRELIMO, enquanto partido único e exclusivo dirigente “autorizado” do povo moçambicano – uma unicidade estampada também a nível da Constituição da República Popular. Mais do que isso, o orgulho por ter lutado contra o colonialismo e vencido pelo punho da arma era também evidente. Vai daí talvez um possível constrangimentos: também com o punho das armas era já combatido o governo da Frelimo, de tal modo que se foi possível o derrube do imperialismo nesses moldes, talvez também, o próprio hino, encorajasse a contra-revolução, aumentando o desconforto do hino como elemento de identidade e unidade Nacional.

Outro trecho controverso que terá eventualmente forçado a mudança deste hino seria:

"(...) Unido ao mundo inteiro,
Lutando contra a burguesia
Nossa Pátria será túmulo
Do capitalismo e exploração"

Efectivamente, a Constituição de 1990 veio a abandonar o socialismo, aceitando o liberalismo económico e, portanto, a burguesia contra qual se lutava foi desde então abraçada. Mais do que isso, novos actores políticos fora da FRELIMO foram reconhecidos, num esforço de se terminar com a guerra civil que desde 1976/77 assolava o país. Aliás, uma guerra que tinha como bandeira o combate ao socialismo, ao monopartidarismo e outros aspectos que marcaram a Primeira República de 1975. Face a estes e outros desafios, a arte de Justino Chemane foi evocada para retratar a nova era multipartidária que se vivia desde então (1990), em que se reconhecia uma “Pátria Amada” por muitos outros actores políticos, onde a beldade dos que ousaram por lutar era cada vez mais reconhecida, não só em Moçambique, mas também por África e Mundo fora.

Chemane usou suas canções como um instrumento de exortação para os moçambicanos se erguerem com orgulho da nação, cumprindo com vigilância e devoção os grandes desafios da nação moçambicana recém-independente.

Vida e obra de Justino Chemane:

• É (co)autor dos hinos nacionais “Viva, viva a FRELIMO” e do “Pátria Amada”
• Se estivesse vivo, Justino Chemane faria 100 anos de vida em 2023 e 20 anos de sua morte em 2024
• Colocou seus conhecimentos artístico-musicais ao serviço do patriotismo e da religião
• É o único músico popular cujos restos mortais jazem na cripta dos heróis nacionais

Referências:

TRIBUTO - JUSTINO CHEMANE: A CHAMA QUE SE APAGOU HÁ NOVE ANOS
PORTAL DA MÚSICA - JUSTINO CHEMANE
Viva, Viva a FRELIMO

(1) Note que Frelimo, em minúsculo, fazendo referência ao partido criado em 1977, que herdou o acronomo FRELIMO, em maiusculo, diferenciando-o do movimento nacionalista fundado em 1962, protagonista da luta de libertação nacional iniciada na década de 1960.

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Pedro Manguene

Pedro Manguene é graduado em Ensino de História pela Universidade Pedagógica de Moçambique – UP, e pesquisador auxiliar no projecto "Figuras e Categorias Políticas" no CEPCB (Centro de Estudos de Paz, Conflitos e Bem-estar). É docente e pesquisador ligado a História política de Moçambique e áreas afins, há pouco mais de 12 anos, com uma carreira docente em escolas e universidades de referência nacional. Colabora desde 2019 para o CEPCB na pesquisa, organização e divulgação de estudos sobre memória histórica e educação política para a paz. É também mestrando em História de África pela Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo.

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