Ainda trazia o casaco engomado, com vincos nas mangas e o característico laço vermelho no bolsinho da frente. Disso não se importava, apenas com o logotipo que, de vez em quando, espreitava da camisa. De vez em quando não, só quando esticava o braço para pedir mais uma…
- Afinal ainda trabalhas aqui, bro? - incomodava-o amigo, sempre intranquilo.
Todos na roda viraram-se com pressa, mas o Raul ajeitou o casaco, até todas as letras vermelhas se esconderem por completo.
- Deixa disso, amigo, vamos beber. Ah, já agora, conta-nos como foi na tropa.
- Lá isso é assunto?! - desviou o amigo - o importante é saber de ti. Como resistes 10 anos na mesma empresa?
Raul voltou a esticar o braço, mas desta vez com cuidado, para que as letras da camisa não espreitassem do casaco:
- Sim, traga mais uma rodada, a ver se este polícia para de tagarelar.
- Tagarelar que nada - responde o amigo, dando o último gole que sobrara da lata - tens que dizer o segredo. Veja este - apontava para outro amigo na roda - muda de emprego a cada ano, como se saltasse de galho em galho.
O outro amigo, que se distraia com um trio de meninas que passava pela rua, virou-se para os dois:
- O único problema do James é a cerveja demorar sair, por isso que estão aí em conversa sem interesse.
Mas não tardou que a rodada chegasse. O Raul pegou na sua garrafa minúscula com tons verdes, o amigo na sua lata e outros dois socorreram das duas garrafas grandes que sobravam. Embora Raul tomasse o líquido mais ínfimo do grupo era ele quem mandava as rodadas e já era a quinta esta, mas a primeira desde que o amigo de infância terminou o curso em Matalana.
- Apesar de seres inconveniente, tens mais três beers na minha conta - zombou Raul.
- Três caixas, mas é. Tu estás bem, aquele Vanguard é disso prova. Até as bochechas não mentem.
Puseram-se todos a rir, animadamente, com direito a soluços e tudo, até a cuspir bocados de cerveja que ainda lutavam para passar da goela.
O quarto amigo, que não falara nada desde que se tinham encontrado, por estar a receber mensagens a todo o instante pela esposa, parece que já tinha sido dado algum intervalo e tentou intervir, mas naquele instante duas colunas projectadas a si já atiravam duro um amapiano de deixar qualquer saia aos delírios.
Reinou o silêncio naquele quarteirão, até o Raul achar que podiam retomar a conversar já aos gritos, para se sobrepor à barulheira. Debalde, era um exercício inútil. Por vezes, quem julgasse que não podia esperar, atirava bocados de saliva no ouvido, mas, mesmo assim, era um martírio para se entender alguma coisa.
Os quatro amigos, que decidiram, entretanto, ter uma sexta-feira tranquila, de mínima paz, decidiram afastar-se daquele rebanho sonoro, a procura de uma esquina vazia de colunas. Colocaram-se ali, longe da música, mas longe do balcão.
- Vai tu - dizia o amigaço do Raul - com um ar de polícia faminto.
- Nada - respondeu o Raul. Vais tu mesmo. Todos aqui te conhecem - contrariou-lhe.
Aflito, saiu para o balcão e, descaradamente, só regressou meia hora depois com duas garrafas de impalas, abertas, como se não bastasse.
- Onde estavas? - perguntaram os amigos, num coro estridente.
O homem colocou as duas cervejas abertas e semi-tomadas por cima de uma viatura estacionada na calçada, à semelhança de muitas que ocupam os quatro sentidos. Aquela, cinzenta e com vidros fumados, é alheia: ninguém conhece o seu proprietário. E, para falar a verdade nem interessava. No James ninguém liga para isso, apenas na hora de ceder quando o dono chega para dar start - ou para sair ou para testar se ainda funciona. Olhou para os três amigos tomados pela aflição, que esperavam a rodada que nunca mais veio. Agora, acho que o assunto já não era rodada, mas sim saber onde o homem tinha se metido. Antes de tentar arquear qualquer palavreado, Raul contextualizou a aflição:
- Por pouco iríamos à esquadra, depois de termos dados três voltas por todo o James e nada.
- Até pensei que tivessem te atropelado, mas não houve qualquer barulho nesse sentido - completou o outro.
- Sim, eu até julguei que tivesses ido para casa, tomares as beers sozinho. Só que, ao mesmo tempo, vi que disso não era capaz, até porque foste tu que cá nos trouxeste - falou o tímido, o casado do grupo.
- Epah…
- Epah nada. Onde te tinhas metido? - retrucou o dono de dinheiro, com um tom menos amigável.
- Nem vos conto… - desenterrou palavras, finalmente o sujeito polícia.
- E se tivessem te arrancado essa coisa aí que gostas de exibir a toa? - resmungou o outro, não o casado, falando da arma que não desgruda da cintura.
Ele pegou na cabeça e ensaiou estar a sair ou a pensar ou as duas coisas e eis que os amigos fizeram um cerco, impedindo tais intentos, mesmo pensar.
- Conta lá, já estou sem paciência - disse Raul, acabando num gole longo a metade da cerveja que restara da garrafa, já sem quaisquer intenções de esconder o logotipo da empresa onde trabalha.
Tindziva. A marca que parecia vermelha, agora está disponível para ser contemplada, naquele acastanhado traído pelas luzes da estrada. O amigo tinha quase razão: Raul trabalhava na empresa há 12 anos e nesses anos reuniu vários cargos, até agora que é director comercial. Por isso, para o bem das vendas da empresa precisa de é representá-la como deve ser. Para além da camisa, o homem anda com crachá, cartões-de-visita, agenda, canetas e até lenço de suor. Todo esse material está estampado o timbre da empresa. Aliás, naquele instante que o comercial exigia saber sobre o paradeiro do amigo já nem trazia mais o casaco. O calor dos amapianos tinha tratado de afastar aquela peça turbulenta do seu corpo, mesmo que não tenha querido ouvir o amigo, o outro:
- Livra-te disso, bro. Estás a ver que aqui ninguém está formal?
É que, para além do casaco e camisa branca, Raul trazia calças que combinavam com o casaco e sapatos formais: estava um executivo no James.
- Sabe se lá onde se fecham negócios - disse, ele, num gozo de tom.
Mas agora só queria saber onde o polícia e a sua arma se tinham metido, mais nada. Mas ele, hesitante, olhava para as cervejas abertas como se visse dois fantasmas e não é que foi no momento que decidiu falar:
- Quando sai daqui, nem dois passos não sei, cruzei-me com duas criancinhas e disse a elas que lhes queria as duas ao mesmo tempo. Perguntei quais era as condições delas. Não vão acreditar…
- Ah, fala logo - exigiram, animados com a história que parecia ter algum interesse.
- Então - continuou - elas disseram que queriam duas cervejas e eu perguntei quais e elas nem demoraram, Impalas. Quando cheguei no bar, perguntei se queriam a lata ou grandes e responderam que preferiam as big one. Somado a isso, queriam dois hambúrgueres, mas quando vi no valor que me deste - olhava para o Raul enquanto esboçava um sorriso - já não cabia para os hambúrgueres e fomos comprar aqueles peixes ali - apontava para um fogão grelhado num dos passeios - e seguimos ao carro. Quando chegamos, uma delas muda de conversa e diz assim: moço, achas que vais nos só com duas impalas e dois peixes? E eu perguntei: assim o que querem mais, e ela, já no banco de traz comigo, diz que queremos dinheiro. Eu disse nem pensar, teriam-me dito logo de início, assim vos dava o tal dinheiro antes de comprar qualquer coisa.
O contador da história foi forçado a ter uma pausa longa. Já não bastava aquele jeito lento de falar, que deixava a todos intediantes, até porque os recipientes já estavam vazios. A pausa, agora, foi porque descia de uma Run-X preta uma moça clara, ou maquilhada. Quando é noite é difícil assumir com exactidão. Na verdade, não paralisou só ao polícia malandro, mas a todos os seus amigos e outros tantos que se perdiam na violência nocturna da rua que desce à Costa do Sol. Houve quem tentou três “olás” seguidos, houve quem preferiu chamá-la de “fofa”, e os mais atrevidos de “gostosa”, mas também, porque nunca faltam, os indisciplinados que gritavam: “queres quanto Yola Reis?”. Certo é que ela, não se sabe se Yola ou Maria, não deu corda nem nó, ajeitou a saia sem mais jeito e meteu-se numa barraca de lado e saiu de lá com cinco espetadas de cuzinhos de galinha, para o espanto de todos. E foi-se, numa velocidade de carregar os pavês da estrada.
- Então, como terminou? - lembrou-se o casado, agora a revelar-se um bom fofoqueiro:
- Nem lhes deixei responder, arranquei as duas garrafas e lhes mandei descer do meu carro. É por isso que estou aqui com estas duas Impalas. Alguém quer?