As Ligaduras

Pensar e escrever sobre o presente enquanto momento impactante do autor-homem, aquele que vive e observa as circunstâncias e as tramoias do tempo durativo e que delas padece, é uma postura que caracteriza, inegavelmente, um escritor engajado e consciente do seu ofício – aquele que em todas as manhãs espreita pela janela fria para espiar as pegadas da noite antes de se entregar à clareira do horizonte: o sol.

I.

Estendo a leitura para a obra de Jeremias F. Jeremias que nos aparece como um cosmorama de abstrações cuja interpretação dói nos sentidos da inteligência. Há quem, por força do hábito, procurará achar o significado singular dos textos de maneira isolada, o que fará com que o leitor caia na desilusão de padecer nas armadilhas que os próprios textos colocaram, gerando uma frequência nómada de significados.

A compreensão do Rostos Desabitados [e] Fragmentos do Escuro(1) impera ao leitor uma leitura geral dos textos e encará-los como um só cujo significado se acha repartido em pequenas franjas ambulatórias, posto que nele, a poesia aparece-nos como sequências de ritmos, vibrações, ondas e imagens condensadas que caiem como se obedecessem a uma misteriosa lei de gravidade. Ou seja, aquilo que para um leitor incauto parece um quadro sujo e cheio de complicações, para um leitor atento, é um quadro de imagens que traduzem significados torpes com um lirismo que coloca o leitor numa permanente sintonia com os versos em busca de qualquer mensagem que se vacila entre os signos – aqui os versos são usados como revelação; num permanente regresso a si mesmo para questionar e reativar a sensibilidade questionável dos homens “essa fruta podre que/ folheia o chão/ somos nós antes e depois de ver o verão ferindo o canto/ do pássaro”. (2)

Entanto, ao questionar o lugar e o significado dos Rostos Desabitados [e] Fragmentos do Escuro: esta é a metáfora das dores do mundo; a tradução da insensibilidade dos humanos perante aquele ente que sofre; a ganância que se vincula com a desvalorização da vida humana; o lugar onde cada um de nós se deve refletir e questionar-se sobre o lugar que ocupa enquanto ente filosófico,

É nesse caos da sintaxe da barca quebrada, onde o mar se avoluma no mastro; é nessa hipocrisia dos braços que não podem coçar o dorso. Trauma das mãos inocentes! (…) Afinal, por que deixar a luz navegar sobre cuidados do furacão?(3)

Entanto, há indigestos por denunciar:

Será que custa escrever como um homem deste planeta? O excesso de poesia também aborrece a inteligência e coloca-nos numa retração em relação ao estilo do escritor e consequentemente, para um leitor incauto, o autor parecer estar a falar consigo mesmo ou para com os seus fantasmas. Nessa ordem de ideia, ainda que o açúcar nos saiba doce e agradável, ele terá que ser misturado com uma quantidade exata de água para que não prejudique a saúde do corpo. O mesmo acontece com a poesia: é preciso dosear a forma e o conteúdo (equilíbrio), de maneira que nem a forma tenha excesso (caso notório no livro), nem o conteúdo seja bruto, sob pena de nos posicionarmos, respetivamente, num excesso de refinamento e numa brutalidade do conteúdo.

II.

Enquanto o Rostos Desabitados [e] Fragmentos do Escuro se articula numa metáfora melancólica total do mundo, O Descalço [dos] Murmúrios(4) de Gibson João, invade e vasculha os interstícios da casa, não só na perspetiva de Hirondina Joshua(5) que manipula os seus utensílios para os dar vida e significados …como também evoca o corpo enquanto linguagem ou voz contínua que «grita entre os gritos do desespero doméstico» e indutivamente, da humanidade, posto que a pobreza e a crise humanitária perpassaram os limites administrativos e invadiram a intimidade da casa «falo das vozes que a casa nutre, porque tudo é igual quando os pratos se calam como uma oração abandonada pelos crentes(6)».

É inquestionável o amor pelas palavras, pela abstração, pela percussão e pelo ritmo, pelo jogo das metáforas e imagens que o jovem poeta nutre conjugado com uma tendência autónoma com a fisionomia dos signos chave cujas pautas causam ressonâncias obscuras, mas compreensíveis. Entanto, Gibson João, ao recorrer frequentemente aos símbolos “escuro, luz, rostos e casa” que são signos recorrentes em Rostos Desabitados [e] Fragmentos do Escuro num estilo vacilante, que não foge do livro em alusão, denuncia simultaneamente ser um escritor que ainda luta e convulsiona em achar o seu próprio estilo, sua forma peculiar de manipular os signos para que não se deixe confundir entre os génios, uma originalidade ou voz própria, ou que o estilo jazente em Jeremias F. Jeremias e o recurso a esses símbolos poéticos constituam um avanço na consolidação das estéticas e poéticas da Geração pós-2000.

É comum que tais similitudes se vigorizem, posto que os génios não nascem, eles tornam-se. Todavia, a termos que optar por esse caminho, convém que nos lembremos das sábias palavras de Arthur Schopenhaeur «O estilo é a fisionomia do espírito. E ela é menos enganosa do que a do corpo. Imitar o estilo alheio significa usar uma máscara. Por mais bela que esta seja, torna-se pouco depois insípida e insuportável porque não tem vida, de modo que mesmo o rosto vivo mais feio é melhor do que ela». E alguém dirá: sr. Harani, mostre-nos os exemplos que ilustram o que nos está a dizer. _Ah! meu caro, as receitas académicas enchem-me de náusea física. Elas cansam-me. Compre os livros e tendo olhos verá o que estou a dizer.

III.

Tenho sempre tido o cuidado de partilhar com os jovens compatriotas que me sempre interpelam a pedir a minha opinião sobre os seus manuscritos e receberem o meu acompanhamento durante a sua atividade criativa, o livro intitulado Cartas para um Jovem Poeta de Rainer Maria Rilke. O que suscita o meu maior fascínio nestas Cartas é a cautela que o Mestre convida ao destinatário e por extensão a qualquer sujeito que pretende aventurar ao ramo das belas letras, sobretudo no que diz respeito às temáticas prosaicas como «o amor, a saudade, a solidão e o uso da ironia», posto que pela sua natureza vulgar e imediata empobrecem a criação artística quando não tratadas com muita cautela e maturidade; são temáticas estagiárias, aquelas que funcionam como manequins oficinais, logo prolixo. Para todos os efeitos, esta foi uma das leituras basilares que faltou na cabeceira do jovem poeta Óscar Fanheiro.(7)

Veja-se um dos excertos seguintes, de tantos outros que podem ser extraídos do seu livro:

Quer dizer, uma noite de longas ternuras, sexo e
inúmeros gemidos
para alegrar o animal selvagem das noites.
Com aquela (mulher) que te prometeu entregar a alma
O corpo e todo um tesouro de sonhos infundidos sobre
o museu dos teus ossos, e da tua carne.(8)

Vamos, de propósito, concordar que cada linha do excerto acima seja um verso e o conjunto todo seja uma estrofe, entanto, não há outro elemento que faz dessa linha um verso além da sua interrupção ao longo do seu percurso; não há outra coisa que faz desse conjunto de linhas uma estrofe, além da sua vertical organização. Da mesma maneira, não há nenhuma construção sintática que não seja vulgar ou prosaica, no sentido mais chão do termo. Ou seja, qualquer das construções acima transcritas pode ser dita por qualquer boca achada em qualquer esquina do bairro sem com isso redundar-se que tal falante seja um artista. Ou por outra, estamos perante um livro que se quer artístico que se construiu sobre uma linguagem quotidiana, vulgar ou prática, se quisermos nos apoderar dos vários termos dos formalistas, mesmo assim, venceu o Prémio.

Se o sentido de uma obra de arte agrega, na perspetiva de U. Eco, a intenção do autor, a intenção da obra e a intenção do leitor, é impossível, sem querer ser pessimista, mapear tanto a intenção significativa do autor, bem como da obra, posto que é difícil entender que temática se serviu como andaime para a edificação do Incêndios à Margem do Sono. Ou por outra, trata-se daquelas situações referidas por A. Schopenhaeur, em que o escritor se faz à escrivaninha sem sequer saber o que vai escrever até que uma ideia qualquer lhe apareça à porta da inteligência; ou uma sequência de palavras sintaticamente corretas e agradáveis à língua e ao ouvido lhe levante o ânimo, entanto destituída de um significado sólido. Logo, entende-se o desfasamento do título da obra em relação aos textos, isto é, os textos não se conduzem dentro da mesma linha temática que corresponde ou que se aproxima ao título do livro como um todo construído. É um livro que se quer Incêndios à Margem do Sono, mas que se nega duma vez por todas a si próprio, pois vigoriza-se por outras temáticas nele contidas. Talvez o desfasamento textual tenha sido o parâmetro-critério exigido pelo júri para a sua seleção! Não se sabe. Mesmo para um cego isto é notório:

Ora vejamos, as palavras silêncio e solidão são recorrentes na maior parte dos textos do livro em alusão (intuo que sejam textos integrantes dos supostos livros inéditos O Manual do Silêncio e outros Mistérios e Gramática da Solidão – cf. na orelha do livro premiado), entanto, estão destituídas de valor, posto que elas aparecem entre tantas palavras e linhas sem nenhuma base de significado, salvo algumas situações que se verificam em alguns gaguejos.

O perfume, por mais dócil e delicado que seja, quando aplicado em excesso ele torna-se tóxico, desagradável e nojento. O mesmo acontece na cozinha: o uso da canela nas receitas de feijão pode tornar o prato mais agradável quando bem doseada, entanto, exagerada a quantidade pode tornar o aroma penoso. Da mesma maneira, o uso de uma língua não dominante (tal é o caso do Inglês) nas literaturas em Língua portuguesa, pode tornar o estilo insípido, desgastante e azedo. Virgílio de Lemos foi um dos escritores da nossa vanguarda que aplicou esse procedimento de maneira bem conseguida, colocando a pedra no lugar e numa dosagem certa. Jeconias Mocumbe da nossa época tentou o mesmo. Todavia, o jovem poeta Óscar Fanheiro, ao recorrer às palavras e construções em Língua inglesa de maneira frequente, logo, exagerada, torna esse recurso e seu estilo, não como um encanto, entanto desencanto e tudo quanto me referi acima.

Será que o valor de uma obra de arte é balançado em função das citações e das dedicações? Esta é mais uma das fragilidades que o Incêndios à Margem do Sono apresenta. Não é preciso ser inteligente ou um génio para perceber que o livro em alusão contém catorze citações que se situam na abertura dos cadernos, bem também na introdução dos textos, além de carregar mais de vinte dedicações (com maior destaque para escritores) como se de um bloco de dedicatórias se tratasse. Aliás, se nos atermos à máxima “um réu um advogado”, qual das citações patentes no livro serve como seu argumento prévio? Que valor artístico esses recursos apresentam? Recorrer a várias citações e dedicações é para todos efeitos uma maneira de denunciar a ausência de convicção sobre o que escreve; é uma maneira de ludibriar o julgamento do leitor e travá-lo através de um para-choque que consiste em arrumar citações de vozes sonantes e dedicações aos escritores compadres, tal é o caso do júri que sem resistência não escapou de tal ludíbrio. A pergunta que não cala: como é que um júri, que por hipótese é idóneo, não viu tais indigestos? Ou se trate de uma cegueira seletiva?

Foi tudo por condescendência.

O júri foi condescendente com o autor do Incêndios à Margem do Sono ao atribuí-lo o Prémio Fernando Leite Couto, a termos que julgar pelos argumentos acima apresentados e entre outros que me escapam e pelo peso dos dois livros premiados (O Descalço [dos] Murmúrios de Gibson João). Todavia, é urgente que o júri entenda que os Prémios não devem ser atribuídos por misericórdia nem por afinidade, posto que eles são um símbolo de reconhecimento das carreiras dos ícones da literatura ou dos seus patronos, além de contribuírem para o desenvolvimento da literatura. Não se deve atribuir Prémio a livros medíocres, posto que tal atitude mancha o bom nome do seu patrono. A ter que se atribuir um prémio é necessário que o júri também leve em consideração o facto de os livros não só carregarem o labor estético, como também um valor social acrescentado associado à sua originalidade e singularidade.

E como leitor, apelo aos gestores da Fundação Fernando Leite Couto a melhorar a qualidade do livro. Refiro-me especificamente ao papel branco sobre o qual se imprimem os livros, posto que a saúde visual é um aspeto que merece a vossa ponderação. Temos como exemplo as editoras Fundza e Gala-Gala Edições, que padecendo dos mesmos problemas económicos oferendam-nos com material tipográfico de qualidade.

IV.

A leitura do Chãos e Outras Arritmias de Francisco Guita Jr.(9) mesmo se tratando de um escritor com os pés assentes ao chão, com um estilo condensado e original remeteu-me ao tal prosaísmo temático acautelado por Rainer Maria Rilke ao dedicar 90% do livro aos temas líricos cuja proa veleja para um passado saudosista. Este recurso ao prosaísmo temático e ao saudosismo pode ser entendido como evasão cuja tendência, metaforicamente e por hipótese, é de aconselhar aos jovens poetas a permitirem que a poesia siga o seu rumo tradicional, o de não estar a serviço de nada, o de possuir uma função não-utilitária e deixarem os assuntos políticos com os políticos consumidos pela gula do dia a dia(10).

Entanto, cuidadosamente, Guita Jr., em As Fotografias Antigas, Refrão e Selfie deixa entender que não é ignorante nem míope em relação aos assuntos tenebrosos que assombram e agitam os jovens poetas do pós-2000. É nesses textos onde se situa o sentido graúdo da sua criação que se configuram como «desencanto tautológico com o presente subsequente».

Mencionei os títulos comerciais e os títulos polémicos, no artigo anterior intitulado As Lesões, cuja pretensão única é de suscitar espectativas no leitor e encurralá-lo na cerca da barganha e depois traí-lo com a vergonha, sendo que um bom leitor entenderá sem esforço que o livro bom não se lê e nem se escreve pelo seu título jornalístico e publicitário, mas sim por ele agregar um valor sociocultural acrescentado. E As ancas do camarada chefe de Sérgio Raimundo é o cume de tal trapaça. De tal Barganha:

A literatura enquanto um campo multidisciplinar, terá que ser cautelosa em relação à abordagem de conhecimentos científicos, sob pena de ela ser enganosa. Destarte, o autor d’As ancas do camarada chefe ao falar dos fatos históricos era necessário que tivesse revisitado alguns manuais de História de Moçambique, até de África, ou mesmo visitado os espaços históricos para suportar cientificamente os factos mencionados no livro, para que a verdade não seja estrábica. Por exemplo, num dos primeiros textos, ao referir-se a milhares de cidadãos jazentes na Vala Comum de Homoíne, trata-se, sem dúvida, de um engano, posto que o facto histórico de tal tragédia narra centenas e não milhares. Sobre este facto, convido ao escritor a visitar a Vala Comum de Homoíne, para não parecer uma especulação barata, atrevida e, talvez, dum malcriado nas belas artes. É um simples exemplo que merece a nossa atenção ao livro em alusão, cantado e valorado por certos intelectuais, que no meu entender, os tais, podem também estar destituídos de certos conhecimentos sobre a historiografia moçambicana, facto que se justifica pelo seu alvoroço desmedido nas suas cantigas. Entanto, pela natureza do livro, o seu estudo merece a nossa maior atenção e constituirá o baluarte do meu próximo artigo.

(1) Vencedor do Prémio de Poesia Reinaldo Ferreira 2022.
(2) JEREMIAS (2023, p. 31)
(3) JEREMIAS (2023, p. 37)
(4) Vencedor ex-aequo do Prémio Literário Fernando Leite Couto, edição 2023
(5) Os ngulos da Casa, 2020 (Fundação Fernando Leite Couto)
(6) JOAO (2023, p. 10)
(7) Vencedor do Prémio Fernando Leite Couto, com Incêndios à Margem do Sono, 2023.
(8) FANHEIRO (2023, p. 22)
(9) Vencedor do Prémio de Poesia Reinaldo Ferreira 2022
(10) GUITA Jr. (2023, p. 30)

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Harani Mahalambe

Harani Mahalambe é natural de Inhambane. É Professor. Licenciado em Ensino do Português pela Uni Save-Maxixe. Tem paixão pelas Artes e publica artigos de Crítica Literária em revistas nacionais. Publicou desde 2022 O excedente estético: a radymadização da nova arte; As doze varas; As lesões e As ligaduras.

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