Quem anda pela zona baixa da Cidade de Maputo, o coração da capital moçambicana, sempre que anoitece, ou mesmo com o calor da luz do dia, vê, certamente, mulheres preenchendo as avenidas, misturando-se com tantos outros: vendedores de comida e recargas e ovos, agentes Mpesa, agentes fiscalizadores da lavagem de viaturas e (a)gentes que apenas atravessam as avenidas à procura de algum (ou nenhum) destino.
Estão lá as nossas mães, tias e irmãs – algumas caprichosamente avantajadas, outras nem com isso preocupadas; algumas com rosto arregalado, embora com um coração transtornado; algumas entediadas, outras de boa expressão e leveza. Enfim, na baixa – desengane-se quem julgar só na Rua do Bagamoio – há de se alimentar apetites sexuais até à fartura, entre diversos dramas que coabitam de garagens a pensões.
Estas mulheres – ora tratadas por trabalhadoras do sexo ora por nomes que cada um pesca no seu dicionário preconceituoso – há muito são chamadas em reportagens noticiosas, ou em músicas, ou nas artes plásticas e, para bem dizer, em tudo que permite manifestação. Uns diabolizam-nas, como personagens marginais da vida, mas outros respeitam-nas e dão-nas espaço na esfera social – tal é o mote do filme “Mulher da Noite”, da realizadora moçambicana Natércia Chicane.
Chicane, em menos de cinco minutos, retrata um episódio deveras triste que persegue a maioria das mulheres que nos inundam à baixa. Ela, sob as lentes de Ivandro Maocha, fá-lo desprovida de preconceito, embora com um dedo acusador, à semelhança do dedo de quase toda a sociedade moçambicana. Porém, é no meio do enredo que o seu dedo não condena apenas as peripécias dessa mulheres, como também de um labirinto todo em que ela foi forçada a sobreviver e, no final, devolve-lhe à razão, marcando um final feliz.
Ou seja, Chicane não olha para a prostituição como um fenómeno normal, apreciável e de se elogiar, entretanto não o isola de outros factores com uma nódoa indelével na vida da pessoa que decide se prostituir. O pretexto que ela coloca em “Mulher da Noite” não é de todo legítimo, mas é – querendo ou não – o que empurra muitas mulheres à essa vida: a morte dos seus maridos.
Numa personagem bem conseguida por Gigliola Zacara, Chicane empurra a Guida aos beiços dos Biés da vida. Tomás – rosto sobejamente conhecido nas telas – consegue, ao meu ver, a melhor prestação entre os seis personagens, (já) excluindo os quatro figurantes. É uma participação fugaz, mas determinante. É a metáfora do mal, da desgraça e da dor que persegue Guida e o seu filho. Apenas no carro e sem usar da voz, Tomás Bié consegue se passar pelo melhor cliente de prostitutas, com tudo que lhe é de direito: dinheiro, arrogância e um tom de profundo desprezo pela, já agora, mulher da noite.
Zacara, por sua vez, consegue o seu melhor enquanto Guida prostituta do que Guida mãe e viúva. Ela fuma, atira e pisa no cigarro com uma perfeição capaz de fazer todo marmanjo babar e a música de G2 – bem conseguida naquele “flasback” – descreve fielmente àquele tipo de personagem. E mesmo no interior da viatura, os movimentos às notas de dinheiro entre amassos foi de uma legitimidade acentuada.
Enquanto socorre o seu filho de um ataque de overdose e contracena com o médico e, pior, quando o filho recupera o-é de um tom muito “clichélico” e sem emoção. Faltou, se calhar, um guionista para dar vida aos diálogos. Ainda que breves, dado o facto de ser uma curta-metragem (bem curta), podiam ser mais profundos e menos óbvios. Não é porque se deve fazer o espelho dos nossos modus vivendis que se deve cair na “qualqueridade” discursiva.
Peca ainda mais (o filme) quando Dudú, sem antes os sentidos, desperta com a certeza do perdão e da reconciliação, depois de quase toda a sua vida condenando as atitudes da mãe e, como se não bastasse, ter sido esse o motivo de o ter feito entrar nas drogas.
Por exemplo, se Guida o pedisse que lhe perdoasse e ele redundasse em aceitar o pacto com a cabeça, daria num bom final. Os choros da Guida, muito pertinentes, já não seriam de aflição, mas de alívio. Ora, nem tão pouco compara-se a frieza e desinteressante passagem do médico (não digo o personagem, mas o actor). Foi, o Hélio Manhique, muito vazio na performance, redundando num “figurante secundário”. O grave problema foi querer estar por dentro dos dramas daquela família, sem estar ao mesmo tempo. Dito de outra forma, Manhique encarnou um médico (um mau médico, diga-se), mas ao mesmo tempo quis ser amigo dos pacientes. Logo, por tabela, um mau amigo.
Não deixa, entretanto, de ser uma narrativa social pertinente, onde a mulher decide pelo bem do filho largar a prostituição. Um modelo de acção evasivo emocionalmente, mas que dá esperança as mulheres que pensam não ter outra solução. Podia, para completar o curso do sucesso, a Guida ter conquistado um emprego ou acontecer outro milagre, ainda assim satisfaz-me a ideia da mulher da noite ter-se convertido em mãe de família.
Não queria ir pelo lado técnico ou estético das imagens, mas se fosse para permitir algumas leituras diria que se trata de um filme com uma edição simples, pouco trabalhada, se quisermos, mas completa. É uma fotografia que não nos farta, ao mesmo tempo que não nos sacia: comemos à medida. As cores e os efeitos foram pertinentes, também a medir pelos (quase) inexistentes apoios.
Se fosse o júri do concurso de curtas-metragens “Minha Voz Meu Poder”, no âmbito do Ciclo de Cinema Europeu atribuiria o Prémio de Melhor Filme, aliás, como o fez. Não seria por muitos motivos, para além de ter colocado a mulher da noite longe dos que os olhos da sociedade o colocam: no lar e deveras preocupado com a estabilidade familiar, mesmo que o marido já não exista.
Para terminar, não seria sensato se ignorasse o poder do título que Natércia Chicane se despropria do nosso imaginário tradicional, contrariamente ao bailado de Leko Nkhuleko, denominado “Mulher da Noite – o eterno amor”.