Eu sou uma espécie de comandante deste navio que se chama ‘Sob Placas Tectónicas’ e vou empurrá-los ao alto-mar desta história que cruza dois jovens: Bruno Mondlane e Denise Cossa e de lá vamos viajar em torno das peripécias que se fragmentam por hilariantes 30 capítulos que perfazem 218 páginas e algumas reticências. Sim, um livro robusto, não só pela quantidade de folhas, obviamente.
Estamos perante um romance, isso não vejo porquê esconder, é a coisa mais fácil de perceber logo que estamos diante do livro. Não pelo título obviamente, mas pela extensão do livro e sua mancha gráfica e quem mergulhar nele, claro, absorve o quão intensas são as estórias.
A trama é única e bem definida pela autora: o amor entre Denise e Bruno. Bom, dizer o amor já é complexo e profundo, tendo as febres que perseguem este sentimento, mas posso ir mais longe, porque Lilly Maxwell fala deste amor na sua própria dose, com as suas peripécias, que não são poucas; com os seus dramas, com os seus conflitos e circunstâncias de cortar o fôlego.
Vamos a história, por pouco tempo, claro: o livro apresenta-nos um casal de jovens, na emergência de uma fase adulta, embora coloque a Denise com dois anos a mais que o Bruno, sendo ele com 28 anos. Conheceram-se num bar, na noite de uma sexta-feira e um beijo fugaz no estacionamento marcou o encontro, antes de se reverem no trabalho da Denise, acidentalmente, quando este, empreendedor, ia prestar serviços que acabara de ser adjudicado. E o encontro circunstancial do bar transformou-se num propósito para Bruno, que via Denise se esforçando para fugir das suas garras e, quando acreditou que usasse o seu principal trunfo, o facto de não poder conceber, pudesse abafar as intenções do rapaz, eis que foi traída, pois ele continuava mais interessado que nunca, mostrando-a um perfil incomum e, mais do que isso, um senso amável e respeitoso pelas insuficiências do outro.
Na verdade, este é o motor para a condução desta história, é o enredo que o narrador usa para conduzir a narrativa. Se entre Bruno e Denise o facto de ela não poder ter um filho biológico, por ter evitado um cancro no útero não houve crises, o mesmo não se diz da família do jovem, que não apoia a relação por ela ser mais velha, primeiro e, segundo, e ainda pior, por não poder conceber. Ainda que este seja o drama maior, Lilly vai colocando dramas de pequena intensidade: o facto de Bruno não ser olhado como provedor pela irmã da Denise, a crise de relacionamento entre Denise e o seu pai e a crise entre Denise e a amiga Telma, só para citar algumas, mas as crises acompanham todas as 218 folhas. Diria, então, 218 crises (risos).
Para além disso, há pequenos galhos de estórias que fazem a história maior, onde se narram peripécias, por exemplo, entre a irmã de Denise, Neide, com Jonas, amigo e sócio de Bruno, um amor de infância que sobrevive a tempestades.
A bebé que Denise encontra largada na rua, e que perde a chance de adopta-lá, também faz outro fragmento da trama, divide opiniões e sentimentos, acelera uma AVC na mãe de Bruno, dá as maiores transformações ao enredo, colocando Bruno a viajar para Beira por sete meses, mas também amputa crises entre as duas famílias.
Como se vê, Lily sugere-nos um livro sobre o amor, mas também sobre a vida urbana e convida-nos a atravessar na nossa própria rotina, marcada por nuances diversas, onde a família joga um papel crucial para nos levantar, bem como para nos arruinar; onde a amizade pode ser fundamental para o nosso crescimento profissional, mas também para um universo de intrigas, onde os ciúmes e a inveja são sentimentos que sempre desfilam a classe. A Lilly não deixa, entretanto, de cutucar alguns fenómenos sociais como a corrupção, ao confrontar uma assistente social que propõe adopções ilegais. E nisto, a autora propõe, também, a discussão da esterilidade, um tabu na nossa sociedade até aos dias que correm e motivo de adultério senão de separações. Mas o amor entre Denise e Bruno venceu estes estereótipos, não só entre os dois, mas também entre as suas famílias, mesmo que sejam tradicionalistas, impondo netos biológicos.
Portanto, é um livro onde o amor vence e desconfigura cenários discriminatórios, rompe dogmas, desconstrói perfis e une pessoas supostamente opostas. Na verdade, a Lilly não nos mostra uma face diferente do que os outros livros e filmes de amor nos sugerem, apenas nos coloca uma visão local, onde é possível discutir os nossos próprios assuntos, as nossas próprias pessoas e os nossos próprios tempos. É um livro deveras actual, que se concentra no agora, ao descrever a cidade de Maputo como ela é, um bónus turístico ao leitor, que reconhece a baixa da cidade, exactamente às imponências da Rua dos Desportistas, às garagens humildes do Alto-Maé e o bairro da Polana. Ou seja, é um livro da cidade, de pessoas da cidade, de problemas da cidade, mas não uma cidade qualquer, uma cidade africana, onde o facto de não poder ter filho não está na moda, onde a mulher que se relaciona com um homem mais novo é vista como cobra, onde um empreendedor ainda não tem trabalho decente se não poder uma grande obra.
Este livro não deixa de exaltar e promover a mulher, colocando a Denise e a Neide, embora com uma renhida rivalidade em quase toda a narrativa, em posições empoderadas, sendo elas donas de si e dos seus percursos, sem qualquer dependência masculina.
Diríamos, sem qualquer dúvida, que estamos perante um discurso feminista – pois, no final, ele se impõe às tempestades machistas. É um narrador que conhece a mulher, e a sua descrição minuciosa não nos engana. É um narrador que se coloca na terceira pessoa, omnisciente, por isso nos oferece uma visão ampla dos eventos e sentimentos, percepções e opiniões. Usa uma linguagem informal, mesmo a nos convidar para um palco do cotidiano, das nuances diárias, tal como sugere esta narrativa. É um narrador que vale pelo seu poder descritivo, de locais, situações, sentimentos e atitudes, mas, mesmo assim, abre espaço para que o leitor identifique momentos através dos diálogos, bem cruzados, assumo, e, por isso, intensos.
É uma escrita continuamente convidativa, penetrante e enigmática, com uma voz certeira sobre assuntos femininos. Não é uma escrita difícil de digerir, tem as palavras soltas e com os seus significados destapados, mas rica em adjectivações. É um romance que nos deixa descobrir, mas não nos oferece tudo. E quando finalmente nos revela os factos, surgem novos paradigmas.
Este jeito de Lilly Maxwell contar-nos a história é singular, pois ela finge nos saciar, para, depois, nos apunhalar com verdades jamais imaginárias. Quem diria que os escritórios onde Bruno iria propor um projecto trabalharia a Denise? Quem diria que quem iria tirar a Denise da esquadra seria o seu pai? Quem diria que a Aurora de Jonas, o fantasma da sua infância, seria a Neide? E quase todo o livro é revestido desse “quem diria”. É uma história que gira sob placas tectónicas, como o título nos sugere, ou seja, grandes blocos rochosos semirrígidos que compõem a crosta terrestre. A Terra divide-se em quatorze principais placas tectónicas, as quais se movimentam sobre o manto de forma lenta e contínua, podendo aproximar-se ou se afastar umas das outras. Lilly abusa desta metáfora de forma formidável, ao colocar o rebuliço entre os protagonistas como sendo uma placa tectónica. Aliás, A movimentação das placas resulta na formação de montanhas, fossas oceânicas, actividades vulcânicas e terramotos. E não é mais do que isso que esta obra nos mostra. É deveras interessante, porque não, que uma funcionária bancária busque um conhecimento da geologia para arrumar a sua trama e bem conseguido, porque, afinal, as placas tectónicas implicam tensão e potencial para causar grandes mudanças, a mesma tensão em que Bruno e Denise sempre sofreram e as mudanças que dela advêm.

Elcídio Bila
Elcídio Bila é jornalista há 10 anos, escrevendo sobre artes e outros assuntos transversais. Tem passagens por dois órgãos de comunicação e diversos projectos de Media. Trabalha também como copywriter e Oficial de Relações Públicas em agências de comunicação. É fundador e director editorial da Entre Aspas.