Ode ao Rostos Desabitados [e] Fragmentos de Escuro (1) – CRÍTICA

A longa noite de escuridão imensa que devastou o Ocidente do século XX sinistrou o mundo global e levou os seus artistas a um niilismo situado nas margens do inconsciente à procura de uma ordem no acaso ironizando e desmistificando toda a cultura do passado, do presente e do futuro das humanidades. Intui-se aí o impulso do rompimento com os códigos sociais. Talvez seja neste absinto onde se instaura a crise simbólica da comunicação artística. Entanto, enquanto a arte dadaísta era a contestação de uma arte que se transformara em mais um produto de valor e de barganha, ela também se posicionava como um símbolo de negação de uma civilização engenhosamente nefasta. Penso no dadaísmo, penso na poesia que o poeta Jeremias F. Jeremias nos propõe no Rostos Desabitados [e] Fragmentos de Escuro, não como anarquia do Ter e do Ser, mas como aquela que ciente da crise simbólica da arte, reconstrói a comunicação artística num ritmo onde se conjugam os símbolos elementares e tradicionais da comunicação verbal como a água, a pedra, o escuro, a luz, o sol e a lua e o pássaro com a perceção, com o inconsciente e o consciente com a finalidade de traduzir as nuvens negras do presente e do agora que determinam de vez as mudanças elementares na economia, geografia, política, religião e relações humanas mundiais. Entanto, como aparar o escuro que assombra a Porta entre os Olhos descerrados? Concordo com Valmir Perez, «às vezes acredito que como contemporâneos de nós mesmos, podemos não estar percebendo exatamente o quanto somos míopes em determinados pontos de vista; e podemos estar sendo enganados por uma espécie de visão distorcida da realidade que nos envolve». Basta-nos só tomarmos uma taça de luz e enxergarmos a superfície dos factos aterradores que nos empurram cinicamente para as entranhas da mortalha: países em busca de lucro rápido, esquecendo suas populações à míngua; a ganância dos investidores internacionais desafiando uma lógica constantemente alardeada por teóricos e cientistas da economia; a intolerância discursiva e ideológica que envolve as potências bélicas e económicas e arrastam os países dependentes e aliados para uma depressão humanitária; a sinistra barganha das potências industriais que empurram os países do terceiro mundo para um beco sem saída de um crescente endividamento; os jovens cientistas que providos da ciência e da lógica, lançam-se, impetuosamente, contra a vida dos seus semelhantes.

Os românticos amam a vida e noutro plano detestam-na. Entanto, teríamos nós que rotulá-los como aqueles que têm um amor oculto pelo Caos? Foram esquartejados pelo desalento da vida e romperam com os compromissos da coletividade; ei-los neste culto do ser, da singularidade, do sentimento. Mas «amar é a arte da cegueira»; saqueia-nos a luz e cobre-nos com a venda negra e guia-nos pelos vales do escuro. Gosto de me imergir neste desalento pela vida, posto que a vida enquanto tautologia do peso não tem que ser amada; é uma avioneta que nos atrai com o alento do voo para nos trair com a queda fragmentária. «Falo estas coisas, porque até certo modo temos língua para dizer coisas brancas ou pretas, ou mesmo nada sobre elas». Não é o silêncio que me desalenta; é a nossa surdez perante a voz do silêncio que grita continuamente nestes rostos desabitados. «A dor do silêncio; a dor da palavra». Não é o escuro que me assusta; é a nossa cegueira perante tanta luz que nos abraça.

E reitero: como aparar o escuro que assombra a Porta entre os Olhos descerrados? Para quê o alento dos olhos se nós não podemos enxergar a verdade vigente entre as imagens translúcidas? Que nos valem as oposições binárias se o Bem e o Mal, o positivo e o negativo se fundem como um só?

P.S. Deixa a porta entreaberta e lança a mão sobre o vão; chama a luz e deixa tudo se traduzir em uma linguagem antes dita e pára para ver os utensílios primários da casa – eis a poética maneira de aparar o escuro que assombra a Porta entre os Olhos descerrados.

Por exemplo quando o verso diz «é inefável porque de deus alguns recebem tamanha luz na boca» é a isto que eu chamo de “reconstrução dos símbolos elementares e tradicionais da comunicação verbal”. Posto que, o conceito “luz” enquanto símbolo expressivo da “razão, orientação, conhecimento, lógica, etc.” quando acasalado com o substantivo “boca”, perde o seu significado tradicional e assimila novas traduções. Iminentemente, neste verso, o poeta está a traduzir a sua indignação relativamente à distribuição da renda social: notoriamente, nos países em via de desenvolvimento, tornou-se uma prática a existência de uma minoria abastada e rodeada de gente à mingua. Há aqui o deslocar da perspetiva de enunciação literária. E um como eu indagaria como deus distribui a renda social – fez-se de carpinteiro porque a matemática e a economia são ciências de barganha.

*****

É fácil nos esgueirar por estes atalhos dos signos, até porque é nossa a língua que nos habita os ouvidos desde a tenra idade dos utensílios. Temos a boca e a língua para falarmos disto ou daquilo que sabemos ou especulamos, que ignoramos ou inventamos, posto que é difícil a recôndita ciência do Sotaque da Solidão – «essa ausência que me faz cair para fora da língua» (Maria Cantinho). É no afilamento da solidão que se costuram os embriões da luz fugidia. Os sociais são lugares de entretenimento, de corrosão, de distração e da inércia da razão vaga e escassa. É vulgar associar a solidão com o padecimento, com a ausência ou carência de amparo. É na solidão, no silêncio, onde se reconstrói o amor. O barulho dos sociais chocalha e corrói a razão e entaramela os passos da imaginação, da perceção e da sensibilidade. É urgente que desaprendamos os contactos e apreendamos a arte da solidão, posto que nela habita «o tempo [que] nos resguarda da opacidade dos cacos não recolhidos para a reinvenção da luz». A solidão, o isolamento e o silêncio são três ângulos inseparáveis da geometria do ente filosófico. E, em Rostos Desabitados [e] Fragmentos de Escuro o pensamento, a palavra e o sentimento talham-se fielmente como um escravo que não o conhecemos. Para o homem vulgar, a solidão oferta-lhe com a sensibilidade perante o sofrimento do próximo; é nela onde o vulgar volta para si próprio e questiona-se sobre a sua condição social e a do seu aparente – mas para tal é urgente que o ente vulgar se desconfigure como centro de tudo. Entanto, para o homem da arte, mais do que isso, aqui se fermentam o pensamento, a perceção, a abstração e trabalham-se os pequenos nadas da arte; funde-se a palavra até ganhar forma e conteúdo – a matéria exata para o fundamento artístico – posto que «na palavra se contém todo o mundo, em parte porque na palavra livre se contém toda a possibilidade de o dizer e pensar» (Fernando Pessoa), ademais partimos da Língua à Gestação do Tempo.

*****

Pensar e escrever sobre o presente enquanto momento impactante do autor-homem, aquele que vive e observa as circunstâncias e as tramoias do tempo durativo e que delas padece, é uma postura que caracteriza, inegavelmente, um escritor engajado e consciente do seu ofício – aquele que em todas as manhãs espreita pela janela fria para espiar as pegadas da noite antes de se entregar à clareira do horizonte: o sol.

A compreensão do Rostos Desabitados [e] Fragmentos do Escuro impera ao leitor uma leitura geral dos textos e encará-los como um só cujo significado se acha repartido em pequenas franjas ambulatórias, posto que nele, a poesia aparece-nos não como “mensagem”, mas como sequências de ritmos, vibrações, ondas e imagens condensadas que caiem como se obedecessem a uma misteriosa lei de gravidade. Ou seja, aquilo que para um leitor incauto parece um quadro sujo e cheio de complicações, para um leitor atento, é um quadro de imagens que traduzem significados torpes com um lirismo que coloca o leitor numa permanente sintonia com os versos em busca de qualquer mensagem que se vacila entre os signos – aqui os versos são usados como revelação; num permanente regresso a si mesmo para questionar e reativar a sensibilidade questionável dos homens “essa fruta podre que/ folheia o chão/ somos nós antes e depois de ver o verão ferindo o canto/ do pássaro”. E ainda me questionais do significado do Rostos Desabitados [e] Fragmentos do Escuro. Esta é a metáfora das dores do mundo; a tradução da insensibilidade dos humanos perante aquele ente que sofre. O lugar onde cada um de nós se deve refletir e questionar-se sobre o lugar que ocupa enquanto ente filosófico:

É nesse caos da sintaxe da barca quebrada, onde o mar se avoluma no mastro; é nessa hipocrisia dos braços que não podem coçar o dorso. Trauma das mãos inocentes! (…) Afinal, por que deixar a luz navegar sobre cuidados do furacão? (2)

Embora a obra de Jeremias F. Jeremias nos aparece como um cosmorama de abstrações cuja interpretação dói nos sentidos da inteligência, o excesso de poesia aborrece a diligencia da razão e coloca-nos numa retração em relação ao estilo do escritor e consequentemente, para um leitor incauto, o autor parecer estar a falar consigo mesmo ou para com os seus fantasmas. Nessa ordem de ideia, ainda que o açúcar nos saiba doce e agradável, ele terá que ser misturado com uma quantidade exata de água para que não prejudique a saúde do corpo. O mesmo acontece com a poesia: é preciso dosear a forma e o conteúdo (equilíbrio), de maneira que nem a forma tenha excesso (caso notório no livro), nem o conteúdo seja bruto, sob pena de nos posicionarmos, respetivamente, num excesso de refinamento e numa brutalidade do conteúdo. Ao que se pode questionar – Será que custa escrever como um homem deste planeta?

Ode I

Desabrochai as pétalas desses olhos dormentes e contemplai o baile da aurora que arrasta a alvorada das fúteis depressões do escuro fragmentado nesses rostos desabitados. Suplantai As Cápsulas da Sombra e hospedai a luz posto que «somos frágeis perante tanta escuridão que nos cerca» (José Mateus). Levantai-vos dos falsos alentos dos leitos e dos divãs e trilhai os passos da luz e da palavra que nos levitam neste «ofício ondulatório dos dedos que nos cansa as narinas na divisão da pétala escura: [vede] a morte que segura o soluço das rosas e a chaga do poema que se inclina contra a chama da dor inocente que na lentidão o ciclo da lua mecânica se transfigura nas mãos deste coração seco». Ah, sentinelas desta Baía acrobática; virgens sertões de Závora, deuses dos distantes píncaros de Namuli; simulacros de Manjacaze…faróis na mira do porto… canoas de recônditos hologramas! Meu fascínio…quebra pejo! Aduz-se a luz nestes rostos indecisos e desabitados cuja palavra se entala no sedento brônquio dos poetas capitalistas. Apartai-vos da moeda e da seda, da velocidade da máquina e dos efémeros títulos – tal mortalha! – e acomodai os sentidos da arte. Aprendai a recôndita ciência de construir pássaros; esqueçais os caducos inúteis requintes do romantismo que falam e não dizem e cantai as dores do mundo, posto que é da dor sentida ou apreendida que a poesia brota. Vede a «íngreme coleção sombria do vento; a demência da língua [que] se multiplica; a pneumonia do verso [que] mata a moradia dos pássaros; e a espuma do incêndio [que] apaga a noite». Que dizer destes póstumos calos, destes póstumos hematomas que nos gritam nos tímpanos e arrombam-nos a porta dos sentidos? E das fissuras? Desferir a palavra sobre estas e outras dores sentidas ou não, é um exercício que impera a luz dos sentidos mais profundos de se ser humano, posto que os sentidos do ato artístico fecundam-se na imersão do mundo de vida e do sonho – estas simetrias da existência que nos rotulam cruelmente.

Aguçai os sentidos e captai as premonições do pranto. Oh, descaso! «O céu está encardido e o sol perdeu a bússola da clareza». Livrai o viveiro da flor da calefação da luz que putrifica a folha sem rosto estiolada e escangalhada à míngua na soleira do desencanto. Oh, deuses, porquê tanto carma?

Ode II

Porquê nos agitarmos rente o Caos que se vigoriza como um negrume sonâmbulo? Olhai para a mulher em pranto escarrapachada convulsivamente sobre o catre da maternidade; escutai o ranger dos seus dentes achatados a traduzirem-se como êxtase da luz; examinai as partituras do suor que tombam massivamente sobre as franjas baças como Pedaços do Escuro – eis a aurora; eis o alvor! «É o desastre obscuro que traz a luz» (Maurice Blanchot). E nas abcissas do vento que roça a calva da criança que reluz como um crepúsculo matutino na sedução dos beijos, dos abraços e das miúdas palavras, jaze uma alma cínica. Ah, «estamos encurralados na métrica do amor; Há pontos e vírgulas mal colocados». Agora dizei-me: quantos tratados os humanos assinaram em nome da sustentabilidade económica, da segurança alimentar global, das fronteiras geográficas, da política e da paz? E nesse absinto trocam beijos e abraços, apertos das mãos e sorrisos, doces palavras e olhares serenos revestidos de um ligeiro manto de cinismo que «apodrece o mármore que nos suporta o coração». Neste caso, a poesia que hoje nos reluz propõe a reestruturação dos abraços, dos beijos, dos olhares, dos toques e dos sorrisos para que não sejamos engolidos pela escuridão.

Oh, poetastros do meu quebranto! «Há uma noite em [vós] se recusando de alvorecer». Mas como vos repugno! Amam a parataxe e ignoram que ela deve ser o produto do domínio excessivo da sintaxe; cultivam o verso livre e ignoram que ele carrega uma rima interna; adoram a linguagem simbólica, imagética e requintada, entanto, seus versos são sofismados e estão ocos de significado literal – voam e não pousam. Que assustadores os olhos enxovalhados dos poetas corrompidos pelo holograma da moeda translúcida! Constroem versos sem viveiros nem poesia, sendo que «a poesia é gene do poema donde o poeta regressa ao quintal, às ruas do bairro para buscar o menino que perdeu o níquel». Ignoram o contrato social que os deuses outorgaram com as artes. Ah, vede o escuro que se desloca como invenção da morte! Entanto, «a lua abre o umbigo da noite e o osso da retina desembrulha o escuro». Aprendais o tortuoso e doce ofício da «recôndita ciência de construir pássaros, pássaros que desembrulham voos e a desordem das asas rasga as nuvens da humanidade [quando] o tempo golpeia a escuridão». Ah, poeta, se o umbigo é a porta do escuro, permita que eu o diga: os olhos são a porta da luz.

Ah, que cálice é o meu! Este meu sangue líquido que goteja o sope dos deuses dos tshwas; estes meus ossos de bambú que ressoam os hinos do torpor; estes meus músculos cansados que alimentam a fome do burguês. «Só quero-me esconder dentro dos meus ossos, fugir do epicentro da morfologia do escuro».

Ode III

Cantemos Beirute nesta Inclinação da Noite nas Chamas. Cantemo-lo como uma coruja no sertão ou como uma viúva que nas mãos abraça a morte do seu primogénito. Ah, este quebranto que se arrasta como uma mortalha encobrindo a geometria do lar com laivos de escuro. O silêncio que se interrompe pragmaticamente no pranto movediço das crianças. Falemos de Beirute e Palma; falemos de Israel e de Palestina; cantemos os prantos de Kiev, Kharkiv e Ancuabe e nesse hino de desolação dizeis-me quem são os vencedores de uma guerra, posto que para mim na guerra o luto não tem bandeira nem ideologia.

(1) Vencedor do Prémio de Poesia Reinaldo Ferreira 2022 *Autor Jeremias F. Jeremias
(2) JEREMIAS (2023, p. 37)

author-img_1

Harani Mahalambe

Harani Mahalambe é natural de Inhambane. É Professor. Licenciado em Ensino do Português pela Uni Save-Maxixe. Tem paixão pelas Artes e publica artigos de Crítica Literária em revistas nacionais. Publicou desde 2022 O excedente estético: a radymadização da nova arte; As doze varas; As lesões e As ligaduras.

About Us

The argument in favor of using filler text goes something like this: If you use arey real content in the Consulting Process anytime you reachtent.

Instagram

Cart