“Rasta”, de Michael Sululo: um ‘rasta’ que canta sobre a outra ‘rasta’

I

Não passaram mais de 20 dias deste novo ano que carrega boas expectativas para aqueles sufocados pelo penoso 20-23. Faltavam quatro minutos para às 19h00, quando Michael Sululo invadiu o meu Whatsapp e junto com a sua mensagem continha um link e um cartaz de propaganda da sua nova música.

As tais boas expectativas que o ano par tem fabricado parece que vão além disso para este jovem na emergência musical que solta um ‘single’ logo no início do ano novo.

Numa linguagem cuidada, o discurso que acompanhava o link dizia algo mais ou menos, ou melhor, dizia taxativamente assim: “Em meio à crise, o jovem moçambicano segue sua jornada, guiado pelo espírito rasta. As lutas financeiras moldam sua jornada, mas a irresponsabilidade se torna a trilha sonora de sua juventude. Mergulhe nesse retrato autêntico da vida, disponível agora em todas as plataformas digitais com a voz única de Michael Sululo.”

Não é só por o ter conhecido no aniversário de Teodósio Rey, a 9 de Dezembro do ano passado, e por ter vivido a sua música rica e o seu múltiplo talento, mas é, sobretudo, por ter conseguido arrastar-me a sua ‘rasta’ com frases bem conseguidas, que arrombei o link e escolhi a plataforma que mais me pareceu familiar e deixei tudo o resto que fazia para mergulhar, como ele próprio disse, no ‘retrato autêntico da vida’.

II

A música leva três minutos. Nem mais, nem menos. Inconformado, repeti mais três vezes. E chata que é, a música teimava em não atravessar os três minutos. Michael Sululo tinha sido metódico, com a fita métrica em dia, dois versos e nada mais – separados por um coro – quer no início como no fim. É uma música efémera, passa a correr, talvez por isso coça-nos os neurónios. E sempre nos convida a voltar a ela, atónitos, com a ideia de termos perdido algo, ou, pelo menos, de não nos termos saciado.

Tem um coro repetitivo, mas nem por isso intrigante: “estou na rasta”, diz Michael Sululo, com uma voz intranquila, mas perfeita. Eu mergulhei os ouvidos na música e ele mergulhou a voz na instrumental. É um ‘beat’ feito mesmo à sua medida. Os sons da guitarra que passeiam em toda a criação imitam a sua voz, com um tom aflito ao mesmo tempo que sereno.

É uma instrumental que nos convida para variantes de reggae e os separadores da música não nos distraem deste estilo musical. Embora lá, para o fim, alguns resquícios de bossa nova atrevem-se aos nossos ouvidos, entre outros compassos que se distorcem ao longo desta produção. Diríamos, então, que se trata de uma fusão – equilibrando harmonias de pop e r&b, para além dos mencionados reggae e bossa nova.

É uma música breve, mas de variações (bem) conseguidas: uma guitarra leve acompanha o coro, uma batida cheia perfila nos versos e se mantém no coro intermediário e aterra com a mesma guitarra que imita a parte inicial. É, justamente por isso, uma música abundante em termos de sonoridades, tranquilizando até os ouvidos mais rigorosos.

III

A par dos sons escolhidos para esta proposta musical, Michael Sululo mostra-se um compositor de mão cheia, fiel caçador de palavras e um pescador nato de rimas. A composição de ‘Rasta’ é poesia genuína, ainda que seja uma música explícita, forjada com uma linguagem informal.

Aliás, o próprio título, ‘rasta’, é um indicador perfeito do quanto Michael Sululo brinca com a língua e ao trazer termos joviais justifica a mensagem que acompanhava o link no meu WhatsApp: “em meio à crise, o jovem moçambicano segue sua jornada, guiado pelo espírito rasta”. É de jovem para jovem que Sululo canta, e isso não se traduz apenas na escolha das palavras e no uso dos termos coloquiais, mas também na narrativa toda. O facto do jovem receber e gastar o seu salário desgovernadamente e ter que recorrer a empréstimos para suprir as suas despesas, como os primeiros instantes da música denunciam, é localizador do seu público-alvo:

“Ando sem tako no bolso, bolsos mais fundos que um poço
Fim-do-mês que nunca chega porque eu torrei o salário de novo”

Como se nota, ‘tako’ em substituição de dinheiro é transmissor desta presença juvenil nos versos de Sululo e há mais:

“Vou dar um toque aos meus djiis para ver se me emprestam um txi
Mas nenhum deles me atende a rasta já está a dar cabo de mim”

Nestes outros versos, ‘djiis’ substitui amigos e ‘txi’ é outro sinónimo de dinheiro. ‘Rasta’, o termo que empresta o título a música significa ‘penúria’, o estado de quem não tem nada. Em outras palavras, de quem passa por aflições financeiras extremas e não vislumbra quaisquer soluções.

Na segunda parte da música prevalecem termos coloquiais, mas aqui interessa-nos falar do seu labor criativo, de sua performance de escrita, que não se dispensa na primeira parte, obviamente, sobretudo quando diz ‘bolsos mais fundos que um poço’, comparando a profundidade de um poço com a ausência de dinheiro no bolso.

Neste segundo momento da música, que complementa o primeiro, Sululo foi mais feliz, ao trazer mais evidências neste retrato ‘autêntico da vida’. Ora vejamos:

“Fome esticou logo cedo, barriga cansou de roer
Fui ver o que tem para comer, a geleira está mais esfomeada que eu
As luzes não acendem em casa, a água parou de sair
A renda já passou a data, a rasta já está a dar cabo de mim”

Neste quarteto, para além do ‘bolso’ e ‘barriga’, que denunciam questões mais umbilicais, o sujeito enunciador faz uma fotografia mais panorâmica dos efeitos da ‘rasta’, ao mencionar que ‘a geleira está mais esfomeada’, que ‘as luzes não acendem’, que ‘a água parou’ e ‘a renda passou da data’. Assim, não há quaisquer desvios do quanto este jovem está na ‘rasta’, minguando de fome e de despesas por suprir.

IV

Esta não deixa de ser uma temática de denúncia dos modus-vivendi actuais, onde os jovens deparam-se com problemas de gestão financeira, gastando mais do que ganham; apostando em futilidades e apostando em vidas de aparências. Por outro lado, Sululo chama atenção para os amigos que escolhemos, que na aflição não nos dão a mínima. Os mesmos que nos perseguem quando o bolso está cheio, quando são dados um ‘toque’ para ver se ‘emprestam um txi nenhum deles atende’.

Eis a realidade juvenil moçambicana cantada em oito versos e três minutos. Nunca tinha visto o espelho mais verosímil dos dias actuais numa só música, sobretudo de uma economia lírica assustadora como esta.

Não há jovem urbano que se não se encontre nesta proposta ou que não aproxime esta realidade ao que vê à sua volta. Aliás, ainda que sejam prismas diferentes, esta música não deixa de ser a extensão dos discursos de Zebito, o jovem com uma colocação própria sobre a necessidade dos jovens construirem um futuro, deixando de, como ele próprio catalogou, ‘comer dinheiro com a boca’.

Sululo não diz outra coisa nesta faixa senão denunciar aqueles que ‘comem dinheiro com a boca’. Só que, além de dizer, com a mesma língua cortante dos Zebitos da vida, o artista arrola as desgraças que perseguem o mesmo jovem quando ‘torra o salário de novo’ numa viagem que localiza o discurso na primeira pessoa.

V

Neste mês dos namorados, era suposto falar de músicas que exaltam o amor, mas cá volto ao ‘rasta’ quando o meu WhatsApp me intima de novo, anunciando que o Rasta de Michael Sululo promete o vídeo-clipe desta música para este domingo (11), cujo o trailer acompanha a mensagem principal.

Só rezo que seja um vídeo digno da qualidade da música. Se não for irei perdoá-lo, pois, sendo um cantor em ascensão, é bem possível que não tenha conseguido fundos para um retrato audiovisual que a indústria musical destes tempos exige. É pelo facto da ‘rasta estar a dar cabo dele’ que vou entender. Só por isso.

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Elcídio Bila

Elcídio Bila é jornalista há 10 anos, escrevendo sobre artes e outros assuntos transversais. Tem passagens por dois órgãos de comunicação e diversos projectos de Media. Trabalha também como copywriter e Oficial de Relações Públicas em agências de comunicação. É fundador e director editorial da Entre Aspas.

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